À Filomena Cabral, que chupava as ampolas da pele quando nos faziam a prova da tuberculina, para que não desse reacção. Guardei isto 19 anos.Vou procurá-la.
( Era a rapariga mais sexy do Técnico, destacava-se completamente. Lia uma página e ficava com a matéria sabida . Extraordinária de inteligente.)
Escrevia-me assim :
Sabes porque na consigo estudar Nita?
Porque me sinto vazia, acho que a vida não tem jeito, e por isso não vale a pena lutar por ela. Estudar para quê?
Para vir do emprego onde há gritos, chegar aqui a casa e ouvir gritos, se tiver a minha casa também vai haver gritos por estar habituada a eles e já nao passar sem os ouvir.
Não quero ir mais ao Técnico.~
Não quero ter exames, saber que posso passar, e não passar, porque não consigo estudar, sinto em mim que estudar é uma doença, crime e infelicidade, porque aqui em casa só se estuda, a Cici, a Guida, a Mamã, todos, e fazem um ambiente doentio, quase de hospital e cemitério à volta do estudo.
Aqui é mais importante fazer um exqme, ir à missa e comer a sopa, do que fazer um ambiente agradável onde as pessoas se sintam felizes, um ambiente que conduza ao equilíbrio psicológico pessoal.
E o pior de tudo é que eu sou igual a eles. Tento não ser mas também sou desiquilibrada, daí eu aí fora não parecer bem o que sou, quero viver tudo de uma vez fora de casa, já que quando volto = > ser infeliz.
O que não quer dizer que lá fora seja feliz. Nao, não sou, porque sei que nao sou eu mesma.
Sei que podia ter amigos pelo que eu sou e pelo que eu posso fazer de bem, e não por ser uma rapariga dentro dos limites da beleza actual , por vestir bem, ou por ser aérea ou inconstante e com uma alegria fictícia que atrai. Entendes?
Nita, ajuda-me por favor se puderes, eu penso que és minha amiga, tu e a Carla, por favor Nita, se não o fores pelo menos finge que és minha amiga. Desculpa se te ofendi com esta falta de certeza, mas é que eu não sou minha amiga e duvido que alguém o seja, quer dizer, mesmo amigo, entendes?
Estou a escrever porque queria que estivesses agora a falar comigo. Não digo que queria que estivesses aqui, porque não é verdade, porque estão a passar-se coisas, aqui e que nem um cão devia assistir, senão era capaz de ficar chocado. É isso mesmo. Aqui em casa está-se mesmo muito mal. Tanto que penso que mal eu fiz para pertencer aqui, porque é que quando nasci não fiquei logo orfã, ou então porque raio nasci.
Eu sinto-me muito sózinha, já ouviste eu dizer isto de certeza, mas nunca compreendeste porquê, nem deves compreender, mas eu não cosigo explicar, só entrando na minha cabeça é que poderias saber e isso é impossivel.
Nita, eu não me sinto bem , sabes?
Estes dias tenho tido muito sono, depois começa-me a doer a cabeça, à noite começo a ficar tonta e adormeço em pé, mas é sono de tonturas com dor de cabeça, o dia a seguir de manhã tenho hemorragias nasais, e só depois disto é que passa a dor de cabeça para começar depois mais tarde. Estou a sentir isto desde 6ª feira, já disse à minha Mãe, e ela disse que devo ir ao médico porque devo ser uma hemofílica. Eu não sei, só espero que seja mau mesmo, para morrer de vez.
Hoje é Domingo mas não vou à missa, não é por nada, mas não quero ver gente, nao quero ouvir ninguém falar de ser bom nem de amor nem quero ver os jovens depois da missa a falarem uns com os outros todos contentes, nem quero ver o Padre Seabra, nem as miúdas bronzeadas da praia nem nada. Isso é alegria e eu estou triste.
Não quero sair de casa.
Estou melhor agora Nita. amanhã continuo a falar contigo.
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